Integridade: o copo meio cheio do combate à corrupção
Artigo originalmente publicado no Estadão
Recentemente uma atitude do atacante Moisés, jogador de futebol do Fortaleza, ganhou o noticiário nacional (e não foi por nenhum gol que ele tenha feito). Ao disputar uma jogada com o zagueiro adversário, este acusou ter se lesionado, levantando a mão ao juiz. Moisés estava em direção ao gol e tinha uma ótima oportunidade de marcar. Entretanto, mesmo não tendo o juiz assinalado qualquer falta ou mesmo parado o jogo, Moisés voluntariamente interrompeu o lance para que o jogador adversário fosse atendido. Detalhe: seu time perdia, em casa, por 1 a 0, o jogo já estava no segundo tempo e o Fortaleza ocupava a última colocação no campeonato brasileiro. Ao final da partida, quando questionado sobre o porquê de não ter se aproveitado daquela situação, ele disse que “o coração mandou”. Muitos classificaram essa atitude como fair play. Prefiro chamar de integridade.
Atitudes como essa acabam ganhando nossa atenção por não serem comuns, principalmente em ambientes competitivos, muito embora fossem desejáveis. Mas o que isso tem a ver com o debate sobre o combate à corrupção?
Muitos defendem que a integridade é a antítese da corrupção. Costumeiramente dizemos que integridade é fazer o que é certo, mesmo quando ninguém estiver olhando. Entretanto, conforme afirma Gerry Zack, CEO da Society of Corporate Compliance and Ethics (SCCE), integridade vai além disso. É fazer o que é certo sim, mesmo que seja impopular, sob imensa pressão e ainda que todos estejam observando (a propósito, todas essas características estavam presentes no exemplo do início deste artigo).
As principais teorias relacionadas ao tema demonstram que para um ato de corrupção ou desvio ético ocorrer, além da motivação do infrator, de sua capacidade para executar aquele ilícito e da oportunidade percebida, um fator-chave para que a infração seja cometida é a possibilidade da racionalização. Mas o que seria “racionalizar” uma atitude irregular?
A racionalização está intimamente ligada à flexibilização de comportamentos e escolhas éticas. É uma forma de se justificar por uma conduta inadequada, de tentar torná-la moralmente aceitável, de convencer primeiramente a si próprio para poder colocar a cabeça no travesseiro e conseguir dormir. Por vezes, as pessoas nem mesmo percebem estarem se desviando de padrões éticos. Exemplos de frases utilizadas para a racionalização não faltam. Vai desde o “é assim que se faz negócios por aqui”, passando por “se eu não fizer, alguém vai fazer”, para finalmente chegar ao “ninguém consegue fazer a diferença sozinho”, que é seria quase uma auto licença para justificar que sua ação isolada não tem nenhum resultado para o coletivo. Mas por que alguém que comete uma fraude ou desvio ético se importaria em querer justificar aquela sua atitude, mesmo que apenas para si próprio?
Adam Smith dizia que a natureza, quando formou o homem para a sociedade, dotou-o de um desejo original de agradar e de uma aversão original de ofender seu irmão. Dan Ariely, Ph.D. e pesquisador da área de economia comportamental, acrescenta que as pessoas são motivadas a agir eticamente e se sentem comprometidas com a integridade, mas por vezes a “bussola moral” é falha. Nesse contexto, a racionalização ajuda as pessoas a reduzirem a desarmonia existente entre a conduta moral padrão e o seu comportamento. Uma das conclusões do seu livro Predictably Irrational (2008), inclusive, é que a desonestidade não é sobre ser pego, mas quanto você pode racionalizar seus atos para justificar sua desonestidade.
A partir da identificação desse comportamento, países que conseguiram melhorar seus indicadores relacionados à corrupção, como Dinamarca, Cingapura e Nova Zelândia, dentre outros, investiram na implementação de um sistema de integridade robusto, com atividades preventivas, detectivas e sancionadoras. Entenderam que o Estado tem sua parte e responsabilidade sobre isso, mas bons resultados só serão alcançados se o tripé setor público – setor privado e sociedade andarem juntos. Isso porque uma maior interface com os cidadãos e entidades afetadas pelas decisões públicas amplia o senso de responsabilidade ética no âmbito do setor público e reduz a percepção de que corrupção é um crime sem vítimas.
No Brasil o tema Integridade vem ganhando força desde 2011, quando a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) avaliou o sistema de integridade da administração pública, emitindo diversas recomendações de melhoria. Segundo a OCDE, um sistema de integridade público é o alicerce basilar para que se promova a confiança no governo, nas instituições e na própria sociedade.
De lá para cá tivemos a edição de importantes legislações na esfera federal, como a Lei Anticorrupção (2013), Lei das Estatais (2016) e o Decreto de Governança (2017). Com certas peculiaridades, todas elas mencionam a necessidade de adoção de medidas de integridade por parte de empresas privadas, estatais e do poder público, respectivamente. Os entes subnacionais também avançaram na temática, com destaque para o pioneirismo de Minas Gerais, cuja Política Mineira de Promoção da Integridade completou cinco anos no último mês.
Mas só leis, normas e punição não resolvem. As políticas de integridade têm ampliado sua abordagem para além do cumprimento formal de regras e repressão das condutas desviantes, de modo a estimular a mudança de cultura e fortalecer escolhas morais, por vezes intrínsecas aos agentes.
A notícia boa é que, segundo pesquisa da Transparência Internacional (2019), 82% dos cidadãos brasileiros acreditam que podem fazer a diferença na luta contra a corrupção. Se essas pessoas que confiam em si mesmas saírem de sua zona de conforto e passarem a ser protagonistas nessa luta, teremos alguma chance.
Parafraseando o ex-presidente dos EUA, John Fitzgerald Kennedy, talvez esteja na hora de pensarmos menos no que o nosso país pode fazer por nós em relação ao combate à corrupção e mais no que nós podemos fazer pelo nosso país na consolidação de uma cultura de integridade.
*Rodrigo Fontenelle, controlador-geral do Estado de MG, presidente do Conselho Fiscal do BDMG e coordenador executivo da Rede de Controle e Combate à Corrupção do Estado de Minas Gerais – ARCCO. Foi chefe da Assessoria Especial de Controle Interno do Ministério do Planejamento entre 2016 e 2018, responsável pela implantação do Programa de Integridade e Gestão de Riscos no MP. Mestre em Contabilidade (UnB). Pós-graduado em Finanças (Ibmec) e Auditoria Financeira (UnB/TCU). Bacharel em Ciências Econômicas pela UFMG. É professor da Fundação Dom Cabral e também atua como instrutor na ENAP. É autor dos livros Implementando a Gestão de Riscos no Setor Público (Ed. Fórum) e Auditoria Privada e Governamental (Ed. Impetus, 4ª edição) e possui quatro certificações internacionais: Certified Government Auditing Professional –CGAP, Certified Internal Auditor – CIA, Certification in Control Self-Assessment – CCSA e CRMA – Certification in Risk Management Assurance, todas emitidas pelo The Institute of Internal Auditors (IIA)
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