Integrity washing ou integridade passada a limpo?
Artigo originalmente publicado no site JOTA
O termo greenwashing foi cunhado para identificar a agenda corporativa de aparências, em que as empresas se travestem como aderentes aos requisitos e princípios da pauta ESG (compromisso ambiental, social e com a boa governança), com iniciativas que encantam pelo seu embrulho, mas não resistem a um escrutínio mais rigoroso.
O mesmo fenômeno corre o risco de ocorrer também no que se refere à agenda de integridade organizacional, seja no setor público ou no mundo corporativo.
O integrity washing, termo que propomos neste artigo, tende a ser um fenômeno cada vez mais recorrente, na medida em que os programas de integridade passam a se constituir em requisitos distintivos na regência do relacionamento das empresas com o próprio setor público. Cabe lembrar que nos últimos anos temos assistido diversos entes subnacionais aprovarem legislações que obrigam empresas a implementarem programas de integridade sob pena de não poderem contratar junto à administração pública.
Na esfera federal, a título de exemplo, a nova Lei de Licitações e Contratos (Lei 14.133/2021), em seu art. 25, § 4º estabelece que “nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento”.
Decerto que a previsão legal é um avanço importante, já que as chamadas “contratações de grande vulto” têm um impacto significativo sobre as entregas do setor público à sociedade. Assim, a expectativa do legislador é que o contratado reúna requisitos não apenas técnicos ou relativos à sua capacidade de proceder à entrega do objeto contratado, mas o faça de forma ética, limpa, íntegra, aderente a princípios coerentes com os valores da própria Administração Pública.
Mas a previsão legal pode resultar numa tentativa das empresas de apenas evidenciarem a mera existência de requisitos de integridade. Como sabemos, a simples existência de dispositivos como código de conduta, canais de denúncias e procedimentos sancionadores, não é suficiente para assegurar a efetividade dos programas de integridade.
Não há dúvida como pontua o filósofo existencialista Jean Paul Sartre, que a “existência precede a essência”. Sartre entendia, ao pensar o ser humano, que não haveria uma essência previamente delineada e definida, mas que a tal essência surge e gradualmente se transforma ao longo da existência.
Vale a analogia para os programas de integridade, que precisam “existir” formalmente, com regras, estruturas e códigos visíveis. Mas essa mera existência de atributos formais e prescritivos em programas de integridade apenas apontam para uma intenção de integridade, e não integridade em si.
O exemplo de canais de denúncia talvez seja pedagógico. Uma organização pode ter um canal de denúncia, com acesso multi-plataforma (internet, extranet, telefone e acesso físico), com fluxo sobre o trâmite claramente desenhado e devidamente formalizado. Mas isso não é garantia de que as pessoas (internamente na empresa ou stakeholders) se sintam confortáveis para acessar esse canal. Esse desconforto pode resultar do receio de retaliações internas (no caso de colaboradores) ou nas relações de negócios (no caso de fornecedores), ou mesmo da percepção de que medidas efetivas de correção e adequação de procedimentos serão adotadas.
A efetividade (ou a “essência”, como diria Sartre) de um instrumento de integridade (como um canal de denúncias) não depende apenas da eficiência do desenho e da operação do canal, mas do desenvolvimento de um elemento intangível dentro da organização: a certeza de que as denúncias aptas serão adequadamente tratadas e apuradas, e que as adequações, correções ou controles necessários para prevenir as ocorrências denunciadas serão implementados.
E essa certeza decorre de uma percepção imaterial, intangível. Trata-se de garantir que um atributo fundamental seja incorporado em todos os ritos de integridade organizacional ou integridade pública: a confiança.
O denunciante terá a confiança de que a aparência de integridade (a existência de canais de denúncia) é coerente com a efetiva disposição e compromisso da organização de que não desprezará os riscos à integridade associados à sua denúncia.
Essa confiança se caracteriza como um patrimônio imaterial da organização e leva tempo para ser construída. A confiança nos mecanismos de integridade não deriva de uma mera declaração de intenções tautológica. Algo como: “confiem em nossa organização, por que somos confiáveis”. A integridade pede mais. Pede evidências. Essência que dê forma e consistência à existência.
Devemos destacar que a confiança faz parte de algo maior em um sistema de integridade, que é a cultura. E por que ela seria importante? O pai da administração moderna, Peter Drucker, já disse certa vez que “a cultura devora a estratégia no café da manhã”.
Nesse ponto, precisamos destacar uma sutil, mas importante alteração ocorrida no Decreto 11.129/2022, que regulamenta a Lei 12.846/2013, também conhecida como Lei Anticorrupção.
O Decreto anterior (8.420, de 2015), já estabelecia que o programa de integridade tem o objetivo de prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Sua versão atualizada acrescenta como objetivo “fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional”.
Ao adicionar essa finalidade, o novo texto normativo se dobra ao reconhecimento de que a integridade deve se constituir em uma pauta que mobiliza e atualiza a cultura organizacional, a ela adicionando camadas que se tornam seus elementos constitutivos: valores organizacionais que passam a ancorar a organização no mar revolto e turbulento dos negócios.
O integrity washing se caracteriza pela adoção de uma “casca” de integridade, uma estética que pode até convencer olhos mais desatentos. Trata-se de uma aparência de integridade destinada a finalidades pontuais e específicas. A analogia não é nova, mas contamos com a paciência do leitor: é o mesmo fenômeno do motorista que dirige a 100 km/h numa via que tem a velocidade máxima estabelecida em 60 km/h, mas ao perceber o pardal, adequa-se conjunturalmente (e temporariamente) aos requisitos de conformidade de velocidade. Menos mau que pelo menos diante do pardal, os motoristas adequem sua velocidade, mas não se trata de um convencimento disciplinado, de uma prática incorporada, resultado de uma reflexão consciente quanto aos riscos de dirigir acima da velocidade máxima estabelecida.
A integridade como mera estética pode ser rapidamente abandonada e substituída por outra moldura. É como o cenário de um teatro. As trocas de cenografia acontecem rapidamente, a depender da ilusão que se pretende construir e do impacto que se pretende gerar junto à plateia. A diferença é que no teatro o público sabe que está sendo enganado. Há a plena consciência de que não há um castelo real por trás da famosa cena do balcão entre Romeu e Julieta. Mas essa moldura agrada aos olhos e torna mais vívido o texto de Shakespeare. Quando se acendem as luzes, somos lembrados de que a cenografia não pode se contrapor à realidade: é um palco vazio de um teatro e não um castelo.
É preciso “acender as luzes” no desenho e na implementação dos programas de integridade das empresas (e também das organizações públicas). A cenografia do integrity washing pode criar uma ilusão e a aparência de engajamento e de consistência dos programas de integridade, mas não se sustenta diante dos desafios do mundo real.
O tempo é o melhor teste para os programas de integridade corporativos. Programas consistentes não são feitos apenas de lemas, de frases prontas e chamadas de efeito, do apelo à sensibilidade estética dos stakeholders. Os programas de integridade não podem depender de meras bravatas retóricas sobre honestidade e ética, ou de um conjunto cenográfico de medidas mal ajambradas, erguidas com apuro estético, mas ancoradas em engajamento duvidoso das instâncias de governança.
A integridade emoldurada pelo marketing corporativo não resistirá ao teste do tempo. Os princípios, códigos e valores declarados são testados na prática corporativa. No relacionamento com fornecedores, clientes, colaboradores. No tratamento não enviesado de denúncias. Na valorização do esforço estruturado de identificação, avaliação e mitigação de riscos e no posicionamento e operação de adequados controles internos.
A coerência e efetividade dos programas de integridade é condição a ser testada pelo tempo. A estética pode até convencer por algum tempo. Mas não por todo o tempo. O castelo de areia da integridade fake se dissolverá com a maré alta.
O integrity washing é tentador, já que não sai tão caro cuidar dessa aparência de integridade no curto prazo. Nesse jogo de faz-de-conta, no entanto, a conta a ser paga será diferida no tempo. E o tempo é impiedoso e implacável.
Parafraseando James Carville, estrategista do ex-presidente americano Bill Clinton a quem é atribuída a frase “it’s the economy, stupid!”, fica o alerta diante da tentação de construção de programas de integridade cenográficos: “É a cultura organizacional, estúpido!”.